Por Flávia Fernandes
A inteligência artificial redefine a memória humana, tornando o passado fluido, editável e sujeito a reinterpretações constantes.
A memória humana sempre foi uma ilha de edição, um arquivo onde selecionamos, organizamos e reinterpretamos lembranças, mas e se, de repente, não fôssemos mais os editores dessa ilha? A ascensão da inteligência artificial tem nos forçado a encarar uma nova realidade: o passado nunca mais será o mesmo.
Para recordar, primeiro é preciso nomear e é na linguagem que construímos nosso passado. A tecnologia, no entanto, tem mudado essa dinâmica. Se antes a memória era uma coleção pessoal e subjetiva, hoje é um vasto banco de dados compartilhado e acessível a qualquer um. Nunca registramos tanto sobre nós mesmos. Entre redes sociais, fotografias digitais, vídeos e ferramentas de IA generativa, estamos cada vez mais próximos de uma memória expandida, onde o esquecimento se torna um luxo do passado.
Esse novo paradigma nos coloca diante de um dilema: se a história pode ser corrigida, reeditada ou até removida, o que de fato permanece? Quando a IA entra no jogo, o ser humano perde parte do controle sobre seu próprio passado. Ferramentas como ChatGPT e DeepSeek remixam nossas memórias individuais e coletivas, criando versões alternativas do que antes era considerado um registro fixo. Estamos diante de um passado inédito, um registro fluido que pode ser moldado a qualquer instante.
O revisionismo histórico sempre existiu, mas agora ele opera em tempo real, sem intermediários, sem limites claros entre o que foi e o que poderia ter sido. Vivemos uma era onde a verdade tornou-se líquida e, agora, gasosa, sendo assim, resta a dúvida: o que permanece quando tudo pode ser reescrito? A reinterpretação da História pode ser uma ferramenta valiosa quando usada para dar voz a narrativas silenciadas, mas relativizar a escravidão ou afirmar que o nazismo era de esquerda não são meras questões de perspectiva – são distorções deliberadas dos fatos.
O passado, como bem sabia Jorge Luis Borges, é uma matéria maleável. Podemos reinterpretá-lo, ressignificá-lo e até reescrevê-lo. Pela primeira vez, não somos os únicos a fazê-lo. Se antes imaginávamos que a tecnologia moldaria nosso futuro, agora percebemos que ela também pode alterar o passado. Ainda não conseguimos viajar no tempo, mas já somos capazes de apagar e reconfigurar partes da nossa história. Por enquanto, essa é a única viagem no tempo possível.
Jorge Luis Borges – O passado:
SOBRE A AUTORA
Flávia Fernandes é jornalista formada pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), professora de língua inglesa e especialista em inteligência artificial pela PUC Minas e Faculdade Exame. Apaixonada por comunicação e inovação, investiga as conexões entre tecnologia, sociedade e o cotidiano.