O jornalismo sempre viveu do gesto de iluminar territórios sombrios. A chegada da inteligência artificial mudou o cenário de forma brusca. Cresce o desconforto do público diante de conteúdos que soam padronizados demais. O relatório do Instituto Reuters, divulgado em outubro deste ano, expõe um cenário que deveria preocupar qualquer redação. Quanto maior a presença de sistemas automatizados na apuração e na escrita, menor a confiança do leitor. O número que salta aos olhos é simples, pois apenas uma minoria se diz tranquila ao consumir textos totalmente feitos por máquinas.
A discussão ganha força porque o campo jornalístico atravessa um momento de fragilidade. Plataformas drenam receita, rotinas ficam apertadas e a pressão por produtividade empurra as equipes a abraçar ferramentas que prometem velocidade. Esse atalho vem cobrando seu preço. O efeito colateral aparece em comentários, redes sociais e pesquisas. Leitores passam a questionar a autenticidade do olhar que molda a reportagem.
Transparência virou palavra-chave. Não basta avisar que houve uso de IA. O público quer entender o caminho percorrido. Um modelo analisou transcrições, outro ajudou a levantar dados brutos. O repórter reescreveu e ajustou. Cada etapa precisa ser mostrada com clareza. Quando isso ocorre, a desconfiança diminui e abre espaço para participação. Há leitores que gostam de atravessar a fronteira que separa o bastidor da narrativa publicada. Tornam-se observadores da engrenagem que move a notícia.
A lógica da lente é central nesse debate. O repórter recorta fatos, pesa falas, compara documentos e escolhe o que merece destaque. Outro profissional, com experiências distintas, faria escolhas diferentes. É esse filtro humano que muitos tentam compreender. Ferramentas que expõem trechos brutos de entrevistas ou permitem explorar o material original podem ampliar a percepção sobre esse processo. Não substituem a reportagem, apenas mostram seu percurso.
Há brechas para um jornalismo mais interativo. Imagine leitores navegando pelos mesmos arquivos usados pelo repórter. Poucos terão fôlego para mergulhos longos. Quem decide percorrer esse caminho passa a enxergar nuances que não cabem na versão final. Essa troca também afeta o jornalista e, ao explicar seus métodos, identifica vícios, lacunas ou escolhas automáticas que escapam na correria da pauta.
Fica evidente que a tecnologia pode reforçar a confiança quando usada como janela e não como cortina. O risco é transformar o trabalho em uma linha de montagem guiada por algoritmos que priorizam volume. A reportagem perde textura e a audiência percebe. Dessa forma, a credibilidade se esvai. A busca por equilíbrio entre velocidade e rigor volta ao centro da conversa.
Talvez estejamos diante de um experimento maior. Entender como as lentes moldam o noticiário e como o público reage a elas pode levar a um novo estágio da profissão. Jornalismo sempre foi construção coletiva, mesmo quando o leitor não percebia. A diferença é que agora ele pode acompanhar o processo de perto. A confiança, tão abalada nos últimos anos, depende dessa abertura. É um movimento que exige coragem de rever métodos e reafirmar princípios que sustentam a imprensa desde sempre.

Flávia Fernandes é jornalista formada pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), professora de língua inglesa e especialista em inteligência artificial pela PUC Minas e Faculdade Exame. Apaixonada por comunicação e inovação, investiga as conexões entre tecnologia, sociedade e o cotidiano.
