Por Flávia Fernandes
A inteligência artificial avança como um trem que não reduz a velocidade. Promete previsões meteorológicas mais precisas, alerta para enchentes e incêndios e orienta políticas de proteção ambiental. Ajuda governos a retirar famílias de áreas ameaçadas antes que o pior aconteça, mas essa mesma tecnologia carrega um rastro pouco comentado. A engrenagem que permite esses milagres digitais consome volumes colossais de água e energia, escondidos atrás de fachadas impecáveis de data centers.
As máquinas que calculam nossa era não funcionam no improviso. Servidores empilhados em galpões refrigerados sem descanso exigem uma quantidade de água capaz de alterar economias inteiras. Comunidades rurais e regiões sob seca recorrente começam a demonstrar impaciência. Novas instalações se transformam em alvo de protestos. Há quem veja nessas construções o mesmo velho problema do extrativismo travestido de modernidade. Empresas gigantes se posicionam como guardiãs do futuro climático enquanto alimentam estruturas que drenam recursos naturais em velocidade acelerada.
O paradoxo se amplia quando as aplicações da IA passam a ocupar o cotidiano de tarefas triviais. Uma redação escolar, uma imagem gerada por curiosidade, uma tradução apressada. Tudo isso depende de cálculos realizados em máquinas que operam sem pausa. Em 2022, essas centrais já estavam entre os maiores consumidores de energia do planeta. A projeção para 2026 empurra os data centers para o topo do ranking mundial, em pé de igualdade com potências industriais.
Há, nesse cenário, uma assimetria desconfortável. Poucas empresas controlam a infraestrutura que define o rumo da tecnologia global. O histórico desse grupo é conhecido. Reagiram tardiamente à avalanche de ódio que circula nas redes, observaram a erosão do jornalismo profissional com frieza cirúrgica e foram lenientes com a disseminação de mentiras que influenciaram decisões públicas. Agora repetem o discurso de que a IA será o escudo contra a crise climática. O planeta paga a conta antes de ver resultados concretos.
No meio desse embate, iniciativas como o Macaozinho surgem como contraponto. O chatbot treinado com documentos oficiais da ONU tenta democratizar o debate climático e combater a desinformação. Com clareza nas explicações de termos técnicos, apoia negociadores de diferentes países e ajuda o público a entender o que está em jogo nas negociações internacionais. A ferramenta indica que há caminhos possíveis para usar IA de forma responsável, transparente e conectada ao interesse público.
De qualquer forma, a pergunta que persiste é outra. Quem regula quem? O poder público segue distante das decisões que moldam a infraestrutura digital mais impactante da atualidade. Leis avançam sem ritmo compatível com a expansão das big techs. A COP30 poderia representar uma virada, afinal, por trás das histórias de inovação existe uma silenciosa disputa por recursos naturais.
A IA pode ser decisiva para enfrentar a emergência climática, mas essa utilidade exige um pacto global que ultrapasse discursos bem ensaiados. O planeta já não tolera promessas vazias disfarçadas por tecnologias reluzentes. A discussão real começa quando governos e sociedades decidem quem lucra, quem perde e quem fica sem água enquanto algoritmos brilham como salvadores da humanidade.

Sobre a autora:
Flávia Fernandes é jornalista formada pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), professora de língua inglesa e especialista em inteligência artificial pela PUC Minas e Faculdade Exame. Apaixonada por comunicação e inovação, investiga as conexões entre tecnologia, sociedade e o cotidiano.
