Por Flávia Fernandes
O Brasil atravessa mais uma onda tecnológica com a mesma velocidade que antes marcou a chegada das redes sociais. Em apenas um ano, a adoção de ferramentas de inteligência artificial generativa saltou de 63% para 89% entre usuários de internet. O uso frequente dobrou e as empresas que implementam IA também aumentaram em ritmo acelerado. A sensação de domínio sobre a tecnologia cresce ao mesmo tempo em que o medo diminui. Essa corrida, que parece um triunfo da inovação, carrega em si uma tensão que poucos estão dispostos a enfrentar.
Os números são da segunda edição da pesquisa “Inteligência Artificial na Vida Real”, conduzida pela empresa brasileira Talk Inc., especializada em pesquisa e comunicação. A pesquisa foi apresentada este mês em São Paulo pelas sócias fundadoras Carla Mayumi e Cristina Brand, com o objetivo de compreender como pessoas comuns, e não apenas “superusuários”, utilizam a IA generativa, quais benefícios percebem e quais riscos reconhecem.
O estudo revela que brasileiros experimentam a IA em múltiplos aspectos da vida pessoal e profissional. Consultas para decisões rotineiras, auxílio em tarefas de trabalho e até aconselhamento em assuntos mais íntimos tornaram-se comuns. A percepção de produtividade e criatividade aumentou, enquanto preocupações com preguiça, dependência e riscos de emprego caíram ligeiramente. Essa ambivalência indica que o país está aprendendo a conviver com uma tecnologia útil, porém ainda pouco compreendida.
O problema não está na popularidade da IA, mas na confiança que se deposita nela sem questionamento. Os modelos mais usados no Brasil, como ChatGPT da OpenAI, Gemini do Google e Meta AI da Meta, não são de código aberto e não divulgam seus detalhes internos. Suas decisões permanecem obscuras e a previsibilidade é limitada até mesmo para os desenvolvedores. Casos recentes de falhas, desde sugestões inadequadas para adolescentes até divulgação indevida de conversas privadas, mostram que o risco é real.
A experiência com redes sociais deveria servir de alerta, pois a falta de letramento digital transformou plataformas promissoras, como Facebook e Twitter, hoje “X”, em ambientes tóxicos. Essa mesma falta de preparo pode se repetir com a IA, pois a ausência de uma educação digital crítica entre os usuários contribuiu para a proliferação de fake news e discursos de ódio.
Essa situação evidencia um paradoxo. A tecnologia entrega velocidade e eficiência, mas não substitui interpretação crítica, ética ou capacidade de reconhecer contextos. A facilidade de acesso e a sensação de controle geram uma ilusão de segurança e poder que pode anestesiar a percepção de risco. Usuários se sentem mais produtivos, mais criativos, mais inteligentes, enquanto o desconhecido permanece invisível.
A adoção em massa da IA reflete um impulso humano familiar: abraçar a novidade sem medir consequências. O entusiasmo pelo “superpoder” da tecnologia convive com dúvidas sobre dependência, impacto no emprego e consequências éticas. Pesquisadores alertam para o perigo de usar assistentes digitais como “câmaras de eco”, potencializando ansiedades e paranoias, fenômeno que já recebeu o nome de “psicose de IA”. Conveniência e rapidez oferecem conforto imediato, no entanto, mascaram riscos que só a reflexão crítica pode revelar.
No Brasil, a popularização da IA mostra a capacidade de adaptação do país, mas também evidencia a fragilidade de um ecossistema digital despreparado. O futuro depende de educação, letramento digital e consciência crítica. A inteligência artificial não é uma ameaça iminente nem uma panaceia. Acredito ser um espelho que reflete a sociedade: rápida em adotar novas ferramentas, lenta em compreender suas implicações. O desafio está lançado e a pergunta persiste. Estamos preparados para usar a IA sem perder de vista o que não pode ser automatizado?

Flávia Fernandes é jornalista formada pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), professora de língua inglesa e especialista em inteligência artificial pela PUC Minas e Faculdade Exame. Apaixonada por comunicação e inovação, investiga as conexões entre tecnologia, sociedade e o cotidiano.